domingo, 18 de janeiro de 2009

imaginar a evidência


Álvaro Siza é um importante arquiteto português e possui muitos projetos na cidade do Porto. Entre eles destaca-se o conjunto de piscinas que fica em Leça da Palmeira. Siza diz um pouco sobre este projeto no livro "Imaginar a evidência", e reescrevo aqui um trecho do mesmo. 

"Poucos anos depois, a Câmara decidiu construir uma piscina, algumas centenas de metros a sul do restaurante, sempre ao longo da costa. Foi escolhido um local onde os rochedos se fechavam num pequeno lago, e foi encarregado do projeto o engenheiro Bernardo Ferrão, irmão de Fernando Távora. O qual, tendo compreendido o notável impacto do projeto na paisagem, decidiu utilizar a colaboração de um arquiteto, e inesperadamente, propôs à Câmara o meu nome. Inicialmente, o engenheiro Ferrão tinha desenhado uma piscina limitada por quatro muros.

Pelo contrário, o meu projeto pretendia optimizar as condições criadas pela natureza, que já ali tinha tinha iniciado o desenho de uma piscina. Era necessário tirar partido dos mesmos rochedos, completando a contenção da água somente com as paredes estritamente necessárias. Nasceu, assim, uma ligação muito mais estreita entre aquilo que é natural e aquilo que é construído. Todavia, graças à experiência anterior¹, aquilo que foi construído foi definido de uma maneira mais clara e autónoma.

Uma arquitetura de grandes linhas, de paredes compridas, buscava um encontro com os rochedos no lugar adequado. O objetivo consistia em delinear, naquela imagem orgânica, uma geometria: descobrir aquilo que estava disponível e pronto para receber a geometricidade. Arquitetura é geometrizar.

Ao mesmo tempo, era determinate resolver o problema do acesso. Dispunha de pouca profundidade, pois a estrada era muito próxima da costa. Além disso existia um muro, de pedra rebocada, com mais de uma quilômetro e meio de comprido, que separava claramente o nível da marginal do da praia. Para além do muro, só um estreito carreiro dividia a área da estrada da praia: como entrar? A solução consistia no desenho de percursos em ziguezague, que produz uma contraditória sensação de profundidade, decisiva na definição do ingresso no recinto.

Contextualmente, funcionava a variação da luz, obtida com a passagem gradual de uma zona no exterior para uma de penumbra que, finalmente, conduzia a um último percurso, já ao ar livre. Aqui os olhos dos banhistas eram protegidos da luz forte proveniente da praia, graças à presença de muros altos.


Chegava-se, então, a uma pequena ponte e depois à praia, epílogo do percurso que encontrava, na idéia de profundidade e no controle de luminosidade, os elementos essenciais de definição.

Foi precisamente a escassa profundidade da área de intervenção que fez com que as várias galerias em paralelo dessem uma extensão longitudinal ao projecto, que assim se tornou o prolongamento ideal do trabalho da Boa Nova², não obstante a distância de um quilômetro e meio.

Naquele momento, começava a tornar-se evidente a necessidade de coordenar as intervenções na zona, a fim de que esta relação e o caráter do lugar não se perdessem. Elaborei então um plano já em 1974, que contudo nunca foi levado para diante. A mudança dos responsáveis camarários e a anulação, na época, da proibição de construir naquela área, de fato puseram fim às aspirações do plano, e eu não voltei a ser consultado pela Câmara de

 Matosinhos. Deu-se início, tristemente, a um loteamento que deformou o espírito do lugar, e a possibilidade de aqueles espaços livres contituírem reserva fundamental para infra-estrutura e parques de estacionamento. Todavia um fragmento daquele plano, o monumento a Antônio Nobre, após muitos anos, foi construído. O escultor encarregado do desenho do monumento, Barata Feio, tinha-me pedido para escolher o local. Decidi aquela colocação quer pela proximidade do Boa Nova, lugar ligado a Antônio Nobre e de notável qualidade paisagística, quer, sobretudo, para promover o ordenamento daquela zona. De fato, este era o primeiro passo para a ocupação dos terrenos vizinhos. O monumento foi inaugurado, mas o arranjo paisagístico foi sendo sistematicamente adiado.

Esta primeira e estimulante experiência de trabalho, com a natureza e as pré-existências, permitiu-me sentir a indivisibilidade entre ambiente e organização do espaço, não obstante a presença de fortes pressões que, geradas por interesses econômicos, se empenhavam em intervenções desconexas, destruindo a continuidade do território."

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¹ referente ao projeto Boa Nova, casa de chá.

² casa de chá




quinta-feira, 9 de outubro de 2008

traços da tradição

A intenção ao postar os dois textos abaixo é refletir sobre as sensações que tenho nestes últimos dias. 

Para esclarecer mais o assunto, sempre li sobre a América e seu grande potencial, por ser um continente que não é preso à tradições. Um dos únicos continentes aonde poderíamos construir uma cidade como Brasília, ou o Ibirapuera, o MASP, o Aterro do Flamengo entre outros projetos com ideais modernistas, pois apenas um país livre do pensamento de apenas reproduzir o que seus avós e bisavós vivenciaram conseguiria seguir o rumo da história e das transformações tecnológicas.

Estes dois textos falam um pouco sobre isto. E eu já os li e reli, porque sentia neles uma realidade e vontade de construir uma cidade nova, uma cidade para os homens, com as necessidades dos dias de hoje, sem nos prendermos a tradições, deixando, assim, o pensamento voar para diversos ideais, sugestões de um belo futuro. Realmente é o projetar para o futuro das cidades dos homens. 

Esta sensação existia mas nunca entendia bem o que era estar preso à tradições. E é aí que entram as novas sensações deste mês.

Estou cursando um ano, aqui em Portugal, na Universidade do Porto, a faculdade de arquitetura e urbanismo. E tive a minha primeira semana de projeto!

Que alegria quando vi a área! Bem grande, ao lado do mar, com um grande passeio no qual muitos andam olhando o belo Atlântico, outros conversam, namoram, andam de bicicleta. São diversos os usos e o local é encantador. Aqui o sol se põe no oceano e os finais de tarde são magníficos. Além desta bela área, também temos um parque que, em comparação com outros que já vi na cidade, não é muito belo. Muito preso a formas e pouco às necessidades. Poderia ser mais usado pela população se fosse projetado para os usos dos dias de hoje, com a beleza natural da região como ponto principal de sua existência. Mas nada disto foi feito. Meu primeiro pensamento, quando o vi, foi: Reformularemos o espaço e manteremos o seu uso, um parque, porém com um novo desenho, muito mais apropriado e convidativo nas tardes ensolaradas!

E a primeira sensação que senti foi os alunos horrorizados com minha atitude. Como eu poderia pensar em redesenhar um parque no qual o avô -no caso a praça não é muito antiga, segundo os portugueses ela é no estilo francês e deve ser do final do século XIX- deles havia sentado e contado tantas histórias sobre o local! 

E foi aí que realmente compreendi o quanto vivemos na América, um território livre de tradições, no qual poderíamos redesenhar todas as cidades. Repensá-las!  E voltei a sonhar com o futuro. De volta ao Brasil!


o espírito da américa do sul

Em quatorze dias um navio nos transporta ao outro lado do Oceano. Tivemos tempo de esquecer o tumulto continental, a solidão das águas acalmou-nose eis-nos aqui intensamente receptivos; vamos conhecer um outro mundo.

Ao cair da noite, uma linha de luzes elétricas cortou em dois o enorme vazio, separando as águas do ar. Essa linha é a Terra, vista em parte, representada por uma entidade quase irreal: os cais iluminados da nova América.

Desembarca-se. Um carro transportou-nosao coração de uma geometria violenta: a cidade. A cidade é o homem. As profundas meditações feitas no “deck” do navio são esquecidas; a um ritmo marcado, a um

tempo de marcha,—um, dois, um dois,—a ação humana nos empunha. Desde o primeiro “bock” colocado na mesa de um bar da Avenida de Majo, os amigos—a esta altura ainda desconhecidos nos dizem, num assomo de franqueza: “Você verá, nós somos assim”. Que golpe! Um boxeador não bateria mais forte: será assim durante dois meses.

Poderíamos ter-nos esquivado e dito: “Primeiro EU”. Mas, estou ávido: escuto, olho e sinto. Posso julgar? Um julgamento é uma sentença definitiva. Sentenciar é deixar de escutar, de ver. É pretender saber. Não

julgo nem julgarei. Prefiro sempre receber. Aliás, o assalto incessante dos elementos exteriores parece-me ter como efeito nos espíritos criadores, o de concentrá-los, comprimi-los, personalizá-los mais do que nunca, cristalizá-los. Nunca me senti tão inventivo como nesses períodos de viagem onde somos perseguidos, martirizados: que ocorra um instante de solidão e o parto se realiza: a idéia nasce, profunda, livre das mesquinharias quotidianas, munida de uma trajetória de longo alcance; a eles, propomos o nosso sentimento, por uma equivalência de situação, com toda a profundidade das verdadeiras e primeiras causas.

Para melhor me explicar, serei objetivo: No Ocidente europeu, carrego comigo já há vinte anos, propostas de urbanização de cidades que são revoltas contra a desordem, que são uma tentativa de ordem. Se o Expresso me conduz a Moscou e o transatlântico a Buenos Aires, se suporto toda a gama de climas e estações, o espetáculo de costumes diversos, todo o choque de raças profundamente diferentes, o consumo de voltagens discordantes, meu Ocidente desintegra-se, desembaraçando de suas mesquinharias supérfluas, dosrestos da epiderme morta. Surge o essencial, decantado: o homem, a natureza, o destino. O motivo e a razão de ser, o caminho que leva a uma razão de viver. E, tendo penetrado a fundo no caso de Paris, cidade milenar, eis-me apto a compreender, numa linha natural, o caso de Moscou, cidade que não é senão um nome e da qual deve-se fazer a máquina pensante da formidável experiência russa, e o de Buenos Aires que já é um nome e cujo destino parece-me próximo e imenso. E o Rio, e Montevidéu e São Paulo. E pouco depois Argel, cidade que se abre para o futuro.

Fui o milésimo ou o primeiro a prever através da geografia, da topografia, do clima, da marcha cíclica das raças, o destino próximo de Buenos Aires? A ter desenhado num papel o esquema fatídico que fomentou nos

EUA, Nova Iorque e na Argentina, Buenos Aires? A ter percebido, desde 1929, a sombra que se estenderá sobre Nova Iorque e a luz que brilhará sobre Buenos Aires? A ter pensado que havia chegado a hora da raça latina após o cumprimento da etapa anglo-germânica? A imaginar que dois mil anos de cultura poderiam enriquecer uma raça e não necessariamente envelhecê-Ia?

A admitir que à hora da propulsão, da explosão que eleva prodigiosamente as energias anglosaxônicas e que precipita o mundo moderno no caos, sucederia a hora cartesiana da medida, da leitura, da escolha, da proposta, da construção, da realização do equilíbrio?

E que o amargo mundo moderno, crispado, ofegante, poderia em breve voltar a sorrir?

Qual é a atitude mental dessas populações a quem o destino reserva majestosas e iminentes aventuras?

...O navio entra e sai dos estuários, prosseguindo seu caminho em direção ao largo; ao longo das peregrinações mundiais por todas as costas desta terra, vê-se o forte genovês, o forte espanhol, o forte português patrulhar o mar e enfrentar as terras; uma flor de geometria no cruzamento dos postos de mar e terra, comanda, patrulha e protege; um cristal de civilização. Todo esse imenso élan da Renascença, esse entusiasmo, essa curiosidade, esse amor pela aventura que é vida e não estagnação, que é ação e não submissão, que é juventude e não lassitude e velhice, que é, aurora e não crepúsculo. A Idéia, dominadora, sacode todas as fronteiras. São homens livres, indivíduos, cabeças fortes, fortes cabeças que partiram para assumir comandos, construir, colonizar. Colonizar é pura e simplesmente deixar para trás os chinelos e incorrer na aventura. O sábio, o artista, colonizam a cada dia. Descobrir, logo revelar. Revelar, conseqüentemente mudar a face das coisas.

Mudar a face das coisas, dar ao ontem um amanhã. As fortalezas dos estuários são cabeças que comandam, patrulham e protegem. São elas que encontramos a cada estuário sul-americano, quando o navio chega.

Atrás dessas altivas fortalezas, após o desembarque, não se encontra senão precipitação, casas de opereta, arquiteturas Nénot e Sociedade das Nações!

Inconsciência ou derrotismo. Ora, simples reflexos (aqui perdoáveis) apressados, irrefletidos das nossas conscientes minuciosas e miseráveis capitulações do Ocidente. Esses sujeitos da América que vieram para cá com outras finalidades, aludiram, desta forma, tímida e puerilmente aos hábitos europeus dos quais, em vindo aqui, desligavam-se. O que vinham fazer?

Duas coisas: a primeira, pouco nobre: ganhar dinheiro. A outra, digna: aventurar-se, tendo-se libertado das servidões triviais de países domesticados como um estábulo de cavalos de aluguel.

As cidadelas, à entrada dos estuários, representavam esse decreto emanado das poderosas autoridades de então: “Procurar o desconhecido, conquistar terras novas, ver, aprender e nos informar”. E como o navegador levava em sua caravela plantas de cidadelas e de cidades! Eis toda a diferença: nesse caso, ía-se para ver e voltar fortes e gloriosos. No outro, parte-se enraivecido para nunca mais voltar, pois nada nos segura mais.

Para o viajante contemporâneo, que hoje desembarca nesses portos da América batizados há alguns séculos pelos “Conquistadores” um fato é bem perceptível: desde 1900, há duas gerações, uma nova civilização explode. E a América do Sul está destinada a uma ascensão legítima. Provas abundam—flores de modernidade desta vez—e já bem impressionantes: os brilhantes cais do Rio, os mais belos do mundo. A avenida Alvear de Buenos Aires que está para a cidade como o Paraíso está para o Inferno. Este arranha-céu inimaginavelmente divertido de Montevidéu e, mais ainda, essas praias extremamente modernas, perto das quais situam-se lindos quarteirões residenciais. E em São Paulo, essa opulência nobre de certas avenidas, ornadas de habitações no estilo da Munique anterior ao modern-style, impagáveis e engraçadas, no país dos plantadores de café que são como os vice-reis de antigamente.

Ingênuos e tímidos como os pensionistas de um convento. De repente, magníficos e luminosos, verdadeira América do Sul. Depois, desastrosamente medrosos. Tomados do medo do ridículo, fazem referência ao senhor Nénot, que construiu a Sorbonne no século XIX, envolveu-se no vergonhoso troféu de açúcar do monumento a Victor Emmanuel na Praça Veneza de Roma, e que traz ao século XX uma imitação da Versalhes destinada a glorificar os atuais reis da Sociedade das Nações. a Europa burguesa é um peso para a América do Sul.

Libertai-vos! A Europa burguesa está virtualmente enterrada. É chegada uma nova hora. A economia geral do mundo vê na América do Sul um devir eminente.

Ora, então: a América do Sul são os latinos. Eles o provaram, fingindo-se de confeiteiros nessas decorações de tortas de creme que se multiplicam nas balaustradas e nas cornijas de gesso, em todos os estuários, à sombra da digna cidadela ancestral. De resto, é inegável que os Latinos são o sorriso. Linha, sol, proporção, clareza. No seu coração, uma vassourada nas balaustradas e um pontapé nos confeiteiros! Isto feito, que a América do Sul, acreditando em seu destino, formule seus projetos e desenhe o seu amanhã. Que o planejamento das cidades seja estabelecido. Que ele se traduza em preceitos e em leis. 

Criar, decretar, realizar.

Que o Rio tente este dasafio: fazer frente, pela arquitetura, à paisagem, e não se entrincheirar atrás daquilo que tão cruamente dizia meu amigo Cendrars: “O que quer que eles façam com seu pequeno urbanismo, serão sempre esmagados pela paisagem”. Creio que por um magnífico desígnio, o homem pode aqui mais uma vez realizar o que a Grécia fez na Acrópole e o que Roma fez nas sete colinas: impor-se à paisagem pela arquitetura certa. A Arquitetura é capaz, pela aritmética de sua linha justa, de integrar toda a paisagem.

E Buenos Aires. Oh! Problema árido e apaixonante! Essa cidade, ao desenvolver-se prodigiosamente anula-se ela mesma. Sua vida é sua morte. A corrida em direção à crise é vertiginosa. É necessário recobrar-se. Ainda é tempo, mas deve-se agir. Não existe cidade mais inumana. O homem perdido nas ruas de Buenos Aires quando o barulho dos alto-falantes, da [calle] Florida cessa depois das 18 horas.

Tal como é, nomeei-a “cidade sem esperança”. Não existe nem montanha, nem colina, nem árvore, nem mar, nem céu nesse coração apertado da cidade. Os pampas magníficos estão além, o rio da Prata é

invisível, o céu argentino daqui a pouco não será mais visto ou então será engolido pelas mandíbulas das cornijas que quase se juntam lá em cima.

Palermo nos diz o que fazer. E o Rio nos chama. La Barranca fornece a solução assim como os recifes encobertos diante do porto. A técnica moderna permite realizar a Buenos Aires dos tempos modernos. Se a idéia é clara, se o gesto é simples, se a vontade é segura, pode-se construir sobre o Rio da Prata esta cidade voltada para o oceano, por valorização. Pode-se financiar a operação. Não se deve mais pensar: Nova lorque. Deve-se pensar: Latinos = clareza, ordem, alegria. Devemos fugir do pesadelo do caos das cidades que materializam esta etapa da

época maquinista, cujo primeiro ato já foi encenado e sobre o qual cai a cortina atualmente. 

Devemos abrir o novo ato. Levantar as cortinas sobre um outro empreendimento, sobre diretrizes que provenham de uma digestão, de uma assimilação, de uma conclusão. 

Crepúsculo, talvez, de Nova York.

Aurora, certamente, na América do Sul.

Latinos, eis aqui a voz do seu destino:

Sorridente, claro, belo.

LE CORBUSIER


américa, arquitetura e natureza

A Arquitetura deve responder nitidamente às situações fundamentais que amparam a vida humana. Essas idéias fazem com que nós, na América, tenhamos que nos reconhecer como portadores de uma experiência extraordinária: habitamos uma parte do planeta recentemente inaugurada no plano do conhecimento.

Nesse âmbito de raciocínio há uma dimensão particular, para nós brasileiros e americanos, que é o fato de termos uma experiência que se inicia com o mundo moderno. A idéia de modernidade, como dizem os mais amados filósofos, para nós americanos está centrada no discurso de Galileu sabre o Universo; na Reforma como uma porta aberta, larga contrafação e dogmática e paradigmas; na espetacular aventura que comprova as afirmações da ciência, as navegações. Nós, americanos, somos protagonistas particulares destes acontecimentos porque instalamo-nos nesses novos recintos descobertos como quem ocupa um planeta novo.

A aventura de ocupação desse território é, por outro lado, uma sucessão de horrores e erros trágicos, de escravatura, de extermínio das populações locais, do empreendimento colonial desmantelado o território. Essa história deixou, para nós brasileiros um desenho – no sentido material, gráfico – imposto pela colonização, a linha do Tratado de Tordesilhas, cujo o estigma deve ser contrariado.No âmbito da organização do espaço, enquanto arquitetos, consideramos a idéia de urgência,  de essencial e da oportunidade de fazer aflorar o fundamental, como o horizonte primordial da arquitetura, o horizonte da paz. Teremos que fundar nosso raciocínio na questão humanística da paz para engendrarmos nossos projetos que serão realizações de antigos desejos, fundantes do gênero no universo. Trata-se de estabelecer territórios reconfigurados para que os altos ideais humanos se efetivem. É uma resistência contra a miséria.  

A revisão crítica do colonialismo, quando à questão da arquitetura e do espaço habitado é fundamental para o estabelecimento de uma personalidade, da concretude do que seja ser homem contemporâneo para todos os povos do mundo. Vemos, na Europa, a recontrução de cidades destruídas por guerras infames, sempre as mesmas cidades. Nossos olhos se voltam para a idéia de construir as cidades americanas na natureza, estabelecendo novos raciocínios sobre o estado das águas, das planícies e das montanhas, a especialidade de um continente, novos horizontes para a nossa imaginação quanto à forma e o engenho das coisas que haveremos de construir.    

texto de Paulo Mendes da Rocha  

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O GRANDE DESPERDÍCIO




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...”As medidas de nossos atos são dadas pela jornada de vinte e quatro horas”.

O argumento fundamental, capaz de esclarecer o público norte americano, antes de nenhum outro, sobre as minhas proposições de reforma arquitetônica e de reorganização das cidades é, precisamente, que nossa jornada solar tem sido desrespeitada. Que em conseqüência da negligência e pela insaciável voracidade do dinheiro foram tomadas, em matéria urbana, iniciativas nefastas. O trabalho, o imenso trabalho de desenvolvimento da cidade, é regido por este proveito e vai contra o bem estar dos homens. Somente invertendo esta situação falsa poderemos encontrar as alegrias essenciais. É dentro da jornada solar de vinte e quatro horas que o equilíbrio deve existir, de onde devemos instaurar um novo equilíbrio. Fora disto, não há salvação!

Expresso por um círculo (figura 1) a jornada solar atual tanto nos Estados Unidos como na Europa.

O primeiro setor de oito horas (A) representa o sono. Assim, nas manhãs de cada dia, a jornada será nova e fresca. Em (B) temos uma hora e meia perdida nos transportes coletivos – trens, metros, ônibus, bondes – .  Em (C) temos 8 horas de trabalho que representam o trabalho individual atual na produção necessária. Em (D) temos novamente os transportes coletivos: tempo desperdiçado. O saldo (E) são as cinco horas noturnas de tempo livre: mesa familiar, vida dentro da concha de caracol: a casa. Que casa?


                                  

Vocês querem me dizer quando, nesta jornada rotineira, esta jornada que dura o ano inteiro, a vida inteira, quando o homem – este animal físico estruturado, coberto de músculos, animado por um circuito sanguíneo, atravessado por uma rede nervosa, alimentado por um sistema respiratório –, quando esse ser vivo, com seu mecanismo sutil e delicado, poderá fazer com sua própria máquina o que é necessário fazer com todas elas: a limpeza, o cuidado, o reparo? Nunca. Não há tempo para isto! Não há lugares previstos para isto! Digam-me, também, quando esse ser ,organizado desde milhares de anos, abandonou a lei solar, digam-me quando e onde oferecerá seu pálido corpo aos raios regeneradores? Como uma planta no sótão, vive na sombra. O que respira? Vocês sabem bem. O que vêem? Também sabem bem, o tumulto esgotador das cidades de hoje. Seus nervos? Decompõem-se sem nunca se restabelecerem. 

Desenho (fig. 02) o contorno indeciso que limita a região urbana. No centro(M) está a cidade, o bairro dos negócios. As indústrias estão dentro do contorno. A estupidez da desordem e da imprevisão. Esta região urbana é uma reserva imensa, portanto contém 2,3,5,7,10 milhões de seres humanos. Seu diâmetro é de 20, 30, 50, 100 Km. Vocês, os norte-americanos, superam todos os recordes: as regiões urbanas de Nova York e de Chicago possuem 100 km de diâmetro. Que dispersão! Para que? O que dispersa milhões de seres, que os faz ficarem tão longe um dos outros? Por que? É que todos estes homem perseguem um sonho quimérico¹: o da liberdade individual. Porque a atrocidade das grandes cidades é tal que um instinto de salvação empurra cada um a fugir, salvar-se, a perseguir a utopia da solidão. A reivindicação fundamental: a liberdade. São milhões os que querem, assim, voltar a pisar o pasto verde da natureza, os que querem voltar a ver o céu, as nuvens e o azul, os que querem viver com as árvores, esses companheiros da época sem história. Milhões! Por lá vão, lançam-se e agora são milhões considerando que seus sonhos foram assassinados! A natureza se desfaz debaixo das fábricas; ocupam as casas, as estações, os grandes armazéns.     

                

Essas casas são milhões. Formam as cidades jardins (R), criação dos fins do século IXX, aprovada, favorecida, santificada pelo capitalismo: as cidades-jardins, eclusas da grande torrente dos rancores acumulados. Com essa multidão gigantesca, com essas montanhas de condenações e reivindicações, temos um povo dispersado aos quatro ventos do céu: cinza inerte, pó de homens. O estatuto social, egoísta e parcial, prolonga sua vida deste modo.

Nos limites das cidades – jardins desarticulados – está o céu desvanecido. Quando chegam os homens, às oito horas da noite, têm os braços tão cansados quanto as cabeças. Calam-se e vão para suas casas.

Foi perfeitamente destruída toda força coletiva – essa admirável potência da ação, esse entusiasmo, esse criador do civismo –. Esmagada, abandonada, envelhecida, a sociedade vive. Os fomentadores das cidades-jardins e os responsáveis pela desarticulação das cidades têm proclamado em alto tom: “filantropia primeiro; para cada qual seu jardineiro, sua casa, sua liberdade assegurada”. Mentira e abuso de confiança! A jornada não tem mais do que vinte e quatro horas! Recomeçará, amanhã, toda a vida. E toda esta vida é apodrecida por uma desnaturalização do fenômeno urbano.

Volto a desenhar o contorno da região urbana (fig. 03). Coloco a “city” (M). Nestas vinte e quatro horas deve-se acontecer tudo: o movimento furioso dos milões de seres no círculo do seu inferno. Se criaram – já o decido – os T.C.R.P. e os T.C.R.X: os transportes coletivos das regiões P e X. Primeiro ferrovias (S); as vidas nos trens: estação, vagão, estação. Logo os metros (U); logo as estradas (Y): estradas para os bondes, os ônibus, os automóveis, as bicicletas e os pedestres. Reflitam sobre isto: as estradas passam diante da porta de cada uma das casas da prodigiosa, fantástica, louca região urbana! Façam-me o favor de tomar consciência da rede fabulosa das estradas da região urbana.

Entremos agora em uma das casas da região. Nos Estados Unidos, por exemplo, infinitamente maior e melhor do que na França, há aqui a comodidade: luz elétrica, gás para a cozinha, água corrente na pia e no chuveiro, telefone. Os condutores, abaixo da terra, ocupam a inumerável região formando uma rede difícil de imaginar, uma rede com cem quilômetros de diâmetro.

Muito bem!

Quem o paga?

Desta vez a pergunta fica formulada: quem o paga? 

Contestar-me-ão vocês: “é exatamente o trabalho dos tempos modernos, o programa de nossas indústrias e nossas empresas. A abundância”.

Friamente contesto: tudo isso é para fazer vendaval e nada mais. Isso não contribui em nada para ninguém, posto que essa liberdade apaixonadamente buscada, não é nada mais do que vendaval e ilusões: desastre da jornada inconclusa de vinte e quatro horas.

Quem o paga? O estado! De onde tira o dinheiro para isto? Dos nossos bolsos. Impostos esmagadores e dissimulados, somados em tudo o que consumimos: nos armazéns, sapatos, transportes, teatros, cinemas. Por que pagamos, em Paris, 2,10 francos no litro de gasolina quando ela custa 0,25 francos ao desembarcar, com tudo pago, a extração, as jazidas, o trabalho da refinaria, a administração e os dividendos dos acionistas? 2,10 francos? Compreendo!

Compreendo que o gigantesco desperdício Norte Americano e o Europeu – a desorganização do fenômeno urbano – é uma das cargas mais esmagadoras da sociedade moderna. Não é o programa das suas indústrias e empresas! Um mal passo, sobre premissas falsas. A liberdade, eh? Sim, de brincadeira! A escravidão das vinte e quatro horas! É isso!

A conclusão. Pego um giz preto e ,no setor das oito horas de  participação das produção individual necessária, cubro a metade : a metade com preto – a morte –.  Trens, metros, caminhos e todas as conduções e suas respectivas administrações, o pessoal da exploração, o que ajuda a manter e reparar e o policial que ergue seu cacetete branco: todos demonstram o desperdício estúpido dos tempos modernos. Vocês pagam, nós pagamos a cada dia por isto. Por quatro horas de trabalho inútil. As estatísticas norte- americanas nos dizem: “o governo dos Estados unidos toma 54% do fruto do trabalho geral”. Este é o fato.

O dólar não tem auréola. Não há ouro sobrando nos Estados Unidos. Depois da tragédia que ocorreu após a euforia dos abastecimentos bélicos, os norte-americanos se voltam à realidade: onde está o vício do sistema, onde está o novo caminho? Voltaram-se com dificuldade, lutando pára arrancar 4 centavos do desperdício, 4 centavos para viver!

A produção útil para a sociedade é o calçado, a roupa, o abastecimento sólido e líquido, a moradia (o refúgio, em geral), os livros, o cinema, o teatro, a obra de arte. Do mais, não é nada além de vento. Furacão sobre o mundo, o grande desperdício.

O veredicto está pronunciado. Faremos a proposta construtiva, determinaremos o programa dos tempos modernos: reconstrução das regiões urbanas, dos campos.

Desenho, na mesma escala, a cidade dos tempos modernos. Não tem subúrbios. A técnica moderna permite ganhar em altura o que se perdia em extensão. A cidade estará concentrada em breve. A questão dos transportes se resolve sozinha. Voltamos a encontrar nossos pés. Em um edifício de 50m de altura podemos alojar 1000 habitantes/hectare: uma super- densidade. Os edifícios cobrem apenas 12% do solo, os outros 88% são destinados aos parques; os esportes se instalam neles: os esportes ao pés das casas. Na periferia as cidades terminam diretamente nos trigais, nas pradarias e nas hortas. O campo as rodeia (L), os automóveis – um milhão e meio de automóveis por dia em Nova York – são precisamente a enfermidade, o câncer. O automóvel será valioso nos finais de semana, não todos os dias, para penetrar nas ternas vegetações da natureza, a dois passos da cidade.

Concluo: desenho um novo círculo de 24h solares (fig. 05), 4hde trabalho produtivo, participação individual necessária e suficiente na produção coletiva; as máquinas operam seu milagre (C), meia hora de transporte (D). Sobram 11h para os ócios cotidianos.

O grande desperdício norte americano me permitiu aprofundar a aventura dos tempos modernos e ver com mais claridade. Compreendo.

Esses dois discos representativos da jornada solar expressam pura e simplesmente o passado e o futuro.

E essas 11h de ócio tenho muito prazer de renomear: a verdadeira jornada de trabalho da civilização mecânica. Trabalho desinteressado, sem proveito, dono de si, cuidado do corpo, esplendor do corpo; moral sólida, ética. Ocupações individuais livres. Livre participação dos indivíduos em empresas e jogos coletivos. Sociedade em que funcionam todos os motores: o individual e o coletivo, nesta medida justa e proporcionada que é o jogo da própria natureza – a tensão entre dois pólos –. A população está entre dois pólos; um deles, por si só, tende ao zero; os extremos matam a vida, e esta existe no médio, no médio e justo. O equilíbrio não é o sonho, o atropelamento, a letargia, a morte. O equilíbrio é o local em que se conjugam todas as forças, a unanimidade

E é assim que o urbanista pode ler o destino das sociedades.

Sobre tais bases individuais posso, nos Estados Unidos, propor a grande mudança de suas cidades: reorganização dos equipamentos dos países em benefício dos homens. É, ao mesmo tempo, o programa das grandes obras e, como conseqüência, a salvação da indústria, que será regida por objetivos reais.

Assim se desenha a aventura.

Portanto, é preciso lançar ao mundo a aventura!

Lançar as pessoas à aventura! ... os espíritos fortes podem desejar este jogo. Mas e os demais? Tremerão dos pés às cabeças.

Então, que os espíritos fortes lancem a catapulta, que comece a aventura. Tudo será novo. A água, a gente! Não terão outro remédio se não nadar; nadarão e o sal da água os fará alcançar a ribeira.

Ao regressarem, meus companheiros de mesa, a bordo do La Fayette², diram-me: “evidentemente, se os construtores das catedrais percorressem a distância do tempo até a Paris moderna, poderiam exclamar: Como? Com os seus diferentes tipos de aço – macio, duro, cromado, entre outros – com os seus cimentos Portland artificiais e os elétricos, com seus elevadores, perfuradores, escavadeiras, cálculos, ciência da física, da química, da estatística, da dinâmica, meu deus!Não fizeram nada digno e humano! Não fizeram nada que ilumine seus arredores! Nós, com pedras talhadas pacientemente e ajustadas sem cimento, umas as outras, fizemos as catedrais!


LE CORBUSIER, QUANDO LAS CATEDRAIS ERAM BLANCAS (VIAJE AL PAIS DE LOS TIMIDOS), EL GRAN DERROCHE, 1948.